Mário Botas (1952-1983)
O Milagre de Nossa Senhora da Nazaré, 1981/1982Aguarela sobre papel
Aquisição ao autor, 1983
MDJM inv. 103 Pint.
DURANTE O MÊS DAS FESTAS EM HONRA DE NOSSA SENHORA DA NAZARÉ (8 setembro), a pintura "O Milagre de Nossa Senhora da Nazaré", do artista nazareno Mário Botas (1952-1983), traduz uma versão contemporânea sobre a representação iconográfica desta devoção mariana.
CONTA A LENDA que, em 14 de setembro de 1182, quando D. Fuas Roupinho, alcaide-mor do Castelo de Porte de Mós, andava à caça nesta região, terá encontrado um veado. Após uma desenfreada perseguição, o veado, que seria o demónio disfarçado, cai do promontório sobre o mar, salvando-se D. Fuas miraculosamente, pela intercessão de Nossa Senhora da Nazaré, cuja imagem estava ali escondida numa pequena gruta e, segundo a tradição, fora executada em Nazaré da Palestina e trazida pelo último rei godo, D. Rodrigo, e Frei Romano. Em ação de graças, nesse local, D. Fuas mandou construir a Ermida da Memória e, a partir do séc. XIV, tem início a edificação do Santuário, que desde sempre recebeu a proteção real.
COM A DIVULGAÇÃO DOS MILAGRES DA SENHORA DA NAZARÉ, o "Sítio" converteu-se em centro de peregrinação. Anualmente, aqui se realizam as "Festas em Honra de Nossa Senhora da Nazaré" (cf. CNSN), trazendo numerosos Círios.
Ao longo dos séculos, as práticas devocionais originaram múltiplas manifestações artísticas e populares, que simultaneamente cumpriam uma função votiva ou uma recordação da vinda ao Santuário, assim como nos legaram representações pictóricas e escultóricas destinadas a enobrecer altares de igrejas e capelas, quer nacionais quer de além-fronteiras, nomeadamente do Brasil.
Registo de Santo, MDJM inv. 471 Grav |
Entre os "bens de salvação, de proteção dos devotos e de memorização do culto" (Pedro Penteado, 1998), encontramos as gravuras com registos de santos, as "tábuas de milagre", as "lâminas" ou "chapas", até às fitas ou "medidas" de Nossa Senhora usadas pelos toureiros, medalhas, ourivesaria, objetos de adorno, em que o conteúdo etnográfico se impõe ao valor decorativo ou estético da elaboração popular.
Enquanto na representação bidimensional, a iconografia se fixa no momento em que D. Fuas sustenta a pata do cavalo no extremo do promontório, na escultura assiste-se a uma evolução ao longo dos séculos. As primeiras figurações incluíam a representação do cavaleiro, mas, sobretudo a partir do séc. XVIII, a imagem cultuada apenas inclui a Virgem, erguida ou sentada, com as cabeças de anjos aos pés, amamentando o Menino e por vezes sustentando nas mãos a esfera do Mundo.
Já sem fins devocionais, mas certificando a permanência e o alcance identitário deste culto mariano em meados do século XX, encontramos os frescos de Almada Negreiros (1893-1970) para a Gare Marítima de Alcântara (1943-1945), em Lisboa, com um painel dedicado a "D. Fuas, almirante do Tejo, 1º Almirante da Esquadra do Tejo".
Natural da Nazaré, MÁRIO BOTAS não poderia deixar de representar este milagre, numa composição aguarelada de 1981-82, que se diferencia pela inscrição da pequena imagem mariana na gruta.
Esta pintura, comprada pelo Museu Dr. Joaquim Manso ao artista, é das suas raras representações de temática local, entre uma obra contaminada pelo mítico, o onírico e o histórico, que dá corpo a um universo avesso a classificações na pintura portuguesa.
Por aqui em parte reside a singularidade deste trabalho, cuja iconografia advém de uma tradição multissecular, mas que é escolhida pelo artista na ponte entre as suas próprias raízes identitárias e a atmosfera simbólica que sempre evocou.
Ler também "A Biblioteca sugere".
Ler também "A Biblioteca sugere".